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Beaf - Biblioteca Escolar António Ferraz

"Ler engrandece a alma!" [Voltaire]

Beaf - Biblioteca Escolar António Ferraz

"Ler engrandece a alma!" [Voltaire]

Diários de escrita, por Jorge Filipe Miranda Roriz, 10ºB

Nasci a 25 de Março de 1978 em Stuttgart, na Alemanha. Complicações durante o parto, momentos de desespero e de repente um som agudo e contínuo preencheu o bloco operatório por volta das quinze horas. Ela tinha desaparecido.Cresci com os meus dois irmãos mais velhos, Frederico e Fábio, mas as condições em que vivíamos eram miseráveis. Meu pai tinha sido preso, após uma intervenção policial, por tráfico de estupefacientes. Vivíamos sozinhos, os meus irmãos mais velhos não estudaram mas fizeram questão de me instruir com o objetivo de me tornar o alicerce da família. Fui para a escola. Fui gozado, maltratado, humilhado. Vestia-me da união de trapos velhos e não tinha calçado. Não tinha amigos com quem brincar. Nos intervalos isolava-me e escondia-me para que os rapazes de classe superior não me agredissem, e pensava, pensava no meu futuro, o que iria fazer. O tempo foi passando e em casa estávamos cada vez mais desesperados, no início da década de 90, o país entrara numa crise financeira precária. A minha vida logo se desmoronou. Não comíamos há aproximadamente cinco dias e vi-me obrigado a vaguear pelas ruas com a mão estendida a mendigar. Com algumas doações dos mais bondosos, fomos sobrevivendo até que, numa tarde, um senhor bem vestido, acompanhado de dois homens com grande porte, me arrastaram para uma carrinha e me transportaram durante horas. Quando, de repente, a carrinha parou. Abriram a porta velozmente e estava sitiado num dos mais rígidos e rigorosos orfanatos de Duisburg, a norte do país. Instalaram-me num quarto e não me mencionaram razões para ali estar. Passaram horas, dias, meses, anos, de pura solidão e árduo estudo. Comemorei o meu vigésimo aniversário, pela primeira vez com um bolo, fornecido pela Sª. Alice, a funcionária do refeitório. Não poderia continuar no orfanato e saí. Continuava sem dinheiro e o bilhete de comboio de volta a Stuttgart, era muito caro. Como fizera antes voltei a vaguear pela ruas com o intuito de conseguir o valor necessário à viagem. Conheci a Ana Kaufmann, uma rapariga simples, gentil, honesta. Mas, algo havia em comum foi então que ela me contou a sua história. Adotada por uma das famílias mais ricas daquela cidade aquando da juventude. Durante o período em que esteve no orfanato, tentara várias vezes fugir, mas não terá sido bem-sucedida. Devido à tensão e à falta de liberdade tentara também suicidar-se mas apercebeu-se no último minuto que a vida seria muito mais do que aquilo que ela havia conhecido, desistiu. O amor pela literatura levou-a a concorrer à universidade de letras do Norte. Senti naquele momento que algo muito forte nos aproximava. Contei-lhe a minha história de vida e ela melancolicamente começou a chorar. Fez questão em pagar-me a viagem de regresso. Eu aceitei, porque a saudade que sentia dos meus irmãos era superior à ética de recusar a oferta. No dia seguinte, comprei o bilhete e após uma longa viagem onde predominava o sentimento de ansiedade, cheguei a Stuttgart. Corri em direção à rua onde estava situado o casebre em que havia vivido à uma década atrás, mas o local estava degradado, e era percetível a ausência de vida humana. Procurei durante meses, os meus irmãos, mas não os encontrei. O desespero acentuou-se após um ano de intensa e exaustiva procura. Até que os encontrei em estado miserável, num beco na fronteira da cidade de Stuttgart. A casa teria sido hipotecada devido ao não pagamento das cotas mensais da água e da eletricidade. Ana voltou a ajudar-me e sem consentimento dos pais adotivos emprestou-nos um dos muitos apartamentos da família Kaufmann e algum dinheiro. Entrei na universidade de artes e terminei o curso de arquitetura com uma das mais altas médias do ano. As oportunidades de emprego foram surgindo e inúmeros prémios me foram atribuídos. A nível monetário a minha vida foi-se recompondo, ofereci uma casa a cada um dos meios irmãos e garanti estudos para os dois. Recentemente, casei com Ana e os frutos do nosso amor são a Beatriz e o Rui. Hoje, remonto a décadas passadas e resumo a minha vida obtendo como recompensa as expressões curiosas dos meus dois pequenos. Sou quem sou devido às experiências que vivi e à mulher simples com quem casei. Sou eu, Jorge Hübner e uma história de décadas, um diário de uma vida.