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Beaf - Biblioteca Escolar António Ferraz

"Ler engrandece a alma!" [Voltaire]

Beaf - Biblioteca Escolar António Ferraz

"Ler engrandece a alma!" [Voltaire]

Chá de Livros - 10 de Março

«Nada mais intrigante do que um esgar, embora distraído e ocupado, sobre as nossas estantes de livros. Certos livros, vemo-los desarticulados e moles como que implorando-nos, “lê-me, pois estou prestes a desfalecer”. Outros, absolutamente hirtos e potentes, afrontam-nos com tanta sabedoria que se torna difícil encontrar a hora ideal para nos digladiarmos com eles.
O certo é que as nossas estantes ficam mais nobres graças aos livros, transmitem um certo status quando recebemos visitas, mas logo nos incomoda o trabalho de termos que os limpar, ao mesmo tempo que, inversamente, aspiramos a que eles tenham uma certa patine que só o pó, a humidade e os anos conseguirão dar-lhes de forma natural e autêntica.
Há uns dias atrás, peguei num livro desses com patine, folhas amarelecidas, desesperadamente amarradas umas às outras como se juntas tivessem sido vítimas de um naufrágio. A capa, de tipo pergaminho, era matizada de pontos de humidade cinzentos e atada por fios de couro quebradiços capazes de não atar por muito mais tempo. Não lhe peguei para o ler, confesso, até porque era tão recuado no tempo que tive dificuldade e senti-me ignorante ao tentar decifrar o ano da sua edição escrito em letra romana (M, DC, LXXXVII). O conteúdo tinha a ver com máximas políticas e morais de um Padre Jesuíta, de nome Francisco Garau, de Barcelona. Do livro, apenas lhe quis sentir o peso, o cheiro, manuseá-lo num fim de tarde vulgar que aspirava a algo de novo.
Como troca do prazer proporcionado pelo livro, injustamente apenas li os títulos de algumas das suas máximas! Ao pousá-lo, em cima da caixa que ele ajuda a decorar - e aqui está a cobrança que faço ao livro em causa - recordei que esta “peça” foi resgatada para minha casa tal como acontece a um animal solitário na rua que acolhemos por compaixão. Mas, para tudo é preciso ter sorte, pensei… porque pelo menos esta valiosa antiguidade livrou-se de ir para a fogueira ou para o contentor mais próximo.
Constato que até com os livros nos vem o egoísmo ao de cima. Usamo-los, sugamos-lhes o sangue e pomo-los de lado porque já deram o que tinham a dar.
O mesmo se passa quando fazemos uma tertúlia cujos personagens somos nós, os livros e o chá. Nesta partilha, o livro talvez seja o menos compensado, porque se o livro for forte de mais, não passa despercebido e é criticado; enquanto que se o chá for forte, deitamos-lhe água e adocicamo-lo, ou então, ficamos vidrados na sua caixa de folha que utilizaremos na decoração da nossa cozinha, facilmente esquecendo o seu conteúdo.
Penso que para saldarmos a dívida que temos para com os livros, a qual nos incomoda, resta-nos a compensação do livro se ter sentido acariciado nos breves momentos em que decidimos escolhê-lo e aspirar a que as suas folhas rebentem na próxima Primavera, pois os livros, tal como as plantas, também gostam que falemos com eles.»
Eduarda Vieira - Professora de Filosofia

Chá de Livros - 10 de Março

«Nada mais intrigante do que um esgar, embora distraído e ocupado, sobre as nossas estantes de livros. Certos livros, vemo-los desarticulados e moles como que implorando-nos, “lê-me, pois estou prestes a desfalecer”. Outros, absolutamente hirtos e potentes, afrontam-nos com tanta sabedoria que se torna difícil encontrar a hora ideal para nos digladiarmos com eles.
O certo é que as nossas estantes ficam mais nobres graças aos livros, transmitem um certo status quando recebemos visitas, mas logo nos incomoda o trabalho de termos que os limpar, ao mesmo tempo que, inversamente, aspiramos a que eles tenham uma certa patine que só o pó, a humidade e os anos conseguirão dar-lhes de forma natural e autêntica.
Há uns dias atrás, peguei num livro desses com patine, folhas amarelecidas, desesperadamente amarradas umas às outras como se juntas tivessem sido vítimas de um naufrágio. A capa, de tipo pergaminho, era matizada de pontos de humidade cinzentos e atada por fios de couro quebradiços capazes de não atar por muito mais tempo. Não lhe peguei para o ler, confesso, até porque era tão recuado no tempo que tive dificuldade e senti-me ignorante ao tentar decifrar o ano da sua edição escrito em letra romana (M, DC, LXXXVII). O conteúdo tinha a ver com máximas políticas e morais de um Padre Jesuíta, de nome Francisco Garau, de Barcelona. Do livro, apenas lhe quis sentir o peso, o cheiro, manuseá-lo num fim de tarde vulgar que aspirava a algo de novo.
Como troca do prazer proporcionado pelo livro, injustamente apenas li os títulos de algumas das suas máximas! Ao pousá-lo, em cima da caixa que ele ajuda a decorar - e aqui está a cobrança que faço ao livro em causa - recordei que esta “peça” foi resgatada para minha casa tal como acontece a um animal solitário na rua que acolhemos por compaixão. Mas, para tudo é preciso ter sorte, pensei… porque pelo menos esta valiosa antiguidade livrou-se de ir para a fogueira ou para o contentor mais próximo.
Constato que até com os livros nos vem o egoísmo ao de cima. Usamo-los, sugamos-lhes o sangue e pomo-los de lado porque já deram o que tinham a dar.
O mesmo se passa quando fazemos uma tertúlia cujos personagens somos nós, os livros e o chá. Nesta partilha, o livro talvez seja o menos compensado, porque se o livro for forte de mais, não passa despercebido e é criticado; enquanto que se o chá for forte, deitamos-lhe água e adocicamo-lo, ou então, ficamos vidrados na sua caixa de folha que utilizaremos na decoração da nossa cozinha, facilmente esquecendo o seu conteúdo.
Penso que para saldarmos a dívida que temos para com os livros, a qual nos incomoda, resta-nos a compensação do livro se ter sentido acariciado nos breves momentos em que decidimos escolhê-lo e aspirar a que as suas folhas rebentem na próxima Primavera, pois os livros, tal como as plantas, também gostam que falemos com eles.»
Eduarda Vieira - Professora de Filosofia